sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Borgianas*


“Sempre imaginei o paraíso como uma grande biblioteca”
Jorge Luis Borges


As folhas estalavam enquanto os pés progrediam naquele jardim amarelecido. A cada passada, o rosto do ancião buscava as imagens de sua memória, arquivadas através do tempo. Os olhos caídos não disfarçavam a vista cansada, e o calo na ponta do nariz acusava as repetidas horas que manteve-se relendo os volumes da biblioteca. Seus setenta anos deixaram marcas físicas. As pernas tinham dificuldade em suportar o peso do corpo, e uma bengala era necessária para sustentá-lo. O peito movimentava-se numa velocidade curiosa, pois alternava o desespero em inspirar o ar com a sofreguidão dos espasmos do diafragma. Enquanto andava, mirava a entrada do labirinto que gostaria de percorrer.

É assim que imaginei Jorge Luis Borges caminhando num dos cenários fantásticos que criou. Aquela figura respeitosa deve ter-se colocado inúmeras vezes, nos mais variados ambientes, como personagem de alguma trama mirabolante que pôde testemunhar nas páginas dos milhares livros que leu. Foi um dos tripulantes comandados pelo Capitão Ahab, em busca da enorme baleia branca que acabou por destroçar o navio. Sentiu na pele as facadas de Martin Fierro, mas estas eram lâminas que não feriam, e sim desenhavam marcas indeléveis em sua alma.

Sempre que possível, citava essa obra de José Hernandez. Num de seus ensaios, fez questão de frisar a “não-intenção” deste em transformar aquele poema numa das obras pontuais da literatura argentina, como acabou tornando-se. Porém, foi desta falta de intenção que brotou o gênio de Martin Fierro, e toda a cerne do gaucho (sem acento) dos pampas, que tornou-se figura lendária e folclórica. Nas palavras de Borges estavam a definição do que ele próprio se tornaria. Quando quis expressar a falta de pretensão de Hernandez, descrevia o sucesso e o respeito que sua própria obra viria a ter.

No momento que eu olho os volumes de suas Obras Completas expostos na minha prateleira, tento descobrir dentro de mim quais as sementes que foram plantadas no meu interior. É importante eu poder dizer que li a respeito do Vathek de Beckford, ou que sou íntimo de Alonso Quijano. Que sei a importância de um homem como Macedônio Fernandez na vida de Borges — assim como este é importante para mim. Percorri os diversos poemas que escreveu no início de carreira e emocionei-me com sua delicadeza imagética, o detalhe de suas descrições. Porém, o que germinou nas minhas entranhas foi esse interesse incondicional à absorção de quaisquer leituras disponíveis.

Leio seus estudos e tento vislumbrar esse desespero que tinha pelo conhecimento. Deixou de ser paixão pelos livros. A paixão, por mais que dure, tem como característica a temporalidade e sua instabilidade. De acordo com alguns, se não fosse instável, não seria paixão. A relação de Borges com a literatura, na realidade, foi uma obsessão. Ao escrever esta palavra veio-me à mente uma idéia negativa. Um homem enlouquecido, escalando prateleiras para chegar ao topo e buscar um volume empoeirado. Esta cena seria muito provável mas, ao tratarmos deste escritor argentino, está longe de ser uma situação negativa.

Na questão do conhecimento, acho difícil encontrar uma leitura mais proveitosa do que aquela na qual podemos perceber o sentimento interno do escritor. Em Dostoievski, podemos sentir o questionamento interior e os dilemas de uma psique perturbada. Kafka demonstra o retrato da mente caótica e ciente do universo nonsense no qual imergira — ou seja, o paradoxo da perturbação, que consiste nesta junto à consciência da mesma. Esses autores ativam em mim uma reflexão existencial que difere do estudioso argentino. Enquanto descubro meandros inexplorados da minha consciência, por meio de O Processo ou Memórias do Subsolo, Borges faz pulsar outra parte de mim.

Quando leio Borges, percebo aquele homem plácido e de olhos vidrados percorrer as linhas dos livros com o dedo indicador, e parar a cada instante para anotar algo que lhe interessara. Procuro fazer o mesmo, não tenho pressa em terminar. Assim como ele, tento buscar nas linhas ocultas a essência da expressão do homem, que consiste em idéias escondidas entre os espaços das palavras, que somente serão encontradas se analisadas com cuidado. Após isso, colocava-se freneticamente a registrar suas impressões, momento no qual surgiram seus reconhecidos prólogos e as análises de Dante e Shakespeare — ou Carlyle e Whitman — e outra centena de autores.

À medida que tanta criação acaba por inspirar os sentidos criativos, o argentino enveredou pelos contos e poesias, os quais refletem ainda mais suas referências culturais, desde a literatura erudita até a mitologia nórdica e as histórias do Oriente.

A cegueira gradual que foi diminuindo sua visão não o abalou. O escritor sabia que sua doença era congênita e que estaria condenado a isso. Acredito que por esse motivo preocupou-se tanto com a percepção da riqueza das imagens nos seus trabalhos. As discussões filosóficas ficaram em segundo plano, enquanto a beleza da descrição de um episódio ou a complexidade dos entrelaçamentos narrativos mostraram-se muito mais relevantes. Numa palestra a respeito do tema “A cegueira”, disse a seguinte frase: “A cegueira é uma clausura, mas é também uma libertação, uma solidão propícia às invenções, uma chave e uma álgebra”.

Tenho uma pessoa querida que está passando pela mesma aflição de ter que afastar-se da leitura. A escuridão cresce e mistura-se às letras negras impressas no papel. E, junto a estas letras que desaparecem, some aquele sentimento de participação e testemunho das proezas de personagens maravilhosos, como os inúmeros contidos nas mil e uma histórias de Cheherazade. A sensação de vazio neste momento é como a de um diabético que é proibido de ingerir açúcar, ou de um velocista que não pode mais correr.

Sei que isso poderá acontecer comigo. A genética é infalível, assim como a consciência de sua comprovação. O tempo persegue o seu objetivo, que trata-se de encaminhar-nos aos nossos destinos. A partir do momento que o meu poderá tratar-se da privação da leitura, procuro seguir o exemplo deste grande autor.

Borges, para proteger-se de sua sina, procurou absorver a maior quantidade de estudos que pôde por toda a vida. Por fim, tornou-se algo similar ao aleph que descreveu num de seus contos. Era capaz de conter, num único ponto — que seria ele próprio — a amostragem de toda a diversidade de acontecimentos, sabedoria, paisagens e personagens existentes no Universo. E é por isso mesmo que o vejo caminhar por seu jardim de veredas que bifurcam, craquear folhas e relembrar cada lombada dos livros que mascaravam galáxias diversas, comprimidas em singelos volumes.


*texto publicado em 2005 pela Revista Paradoxos, da Universidade Mackenzie, e posteriormente em diversos sites.

**a ilustração contida nesta postagem não possuia crédito, mas foi retirada do link: http://charlesblake.wordpress.com/2007/06/22/biblioteca-personal-jorge-luis-borges

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